Por Anjuli Tostes*

Palco de eventos presidenciais, o imponente átrio do Palácio do Planalto estava diferente. Vidros trincados e madeirites tampando janelas denunciavam o desprezo colérico que tomou conta da Sede do Executivo Federal dias atrás. Os sinais de destruição, no entanto, contrastam com os sorrisos e os gestos animados dos participantes, que não paravam de chegar e se dirigiam, sem muita pressa, para perto do palco. O formigueiro multicolorido se dividia em rodas, aglomerações maiores e menores, abraços calorosos de velhos amigos e apertos de mão. A torrente fazia com que as pessoas se esbarrassem com frequência para conseguir se movimentar. As expressões acolhedoras perante os pedidos de desculpas mostravam que o contato corporal não era, necessariamente, um problema, ou mesmo algo indesejável.

A desconexão entre o cenário e o clima festivo não era a única coisa que, imageticamente, tornava aquele momento singular. O figurino dos presentes se diferenciava, de forma gritante, dos tradicionais ternos cinzentos e pretos – ou, seguindo a tendência atual, em tom azul royal – que costumam desfilar pelo Salão Nobre. Cocares, colares, camisetas. Indígenas, mulheres, gente preta. Bandeiras, muitas bandeiras. Para vários dos habitués das solenidades do Palácio do Planalto nos últimos seis anos, aquele dia, e não o 8 de janeiro, representava uma verdadeira invasão. Para os que estavam ali, no entanto, o sentimento era bem outro. Era o povo que voltava, emblematicamente, a adentrar os espaços de poder.

Transcender ao símbolo, no entanto, não será tarefa fácil. Naquele dia, o presidente Lula assinou dois decretos, que instituíram, respectivamente, o Conselho e o Sistema de Participação Social Interministerial. O Conselho de Participação Social dá continuidade aos trabalhos iniciados durante a transição governamental e é presidido pelo próprio Presidente da República. Além de autoridades da Secretaria-Geral da Presidência da República – o Ministro, a Secretária-Executiva Adjunta e os três Secretários Nacionais -, integram o Conselho 68 representantes de organizações indicadas e designadas em ato do Ministro de Estado da SG/PR – superando, numericamente, as 57 existentes durante a transição.

Por sua vez, o Sistema de Participação Social Interministerial – é formado pelas recém-criadas “Assessorias de Participação Social e Diversidade” dos Ministérios e pelas unidades administrativas responsáveis pela área de participação social. No centro do sistema está a Secretaria-Executiva da SG/PR. Segundo o Decreto 11.407/2023, que o instituiu, o Sistema de Participação Social terá como missão “estruturar, coordenar e articular” as relações do governo com os diferentes segmentos da sociedade, de forma transversal às políticas públicas.

Os assessores e assessoras de participação social, referências da política de participação social em cada pasta, deverão ser, nas palavras do Ministro de Estado da SG/PR, Márcio Macêdo, servidores que “gostem do povo e tenham compromisso com o povo”. A estes, caberá articular e fomentar as relações políticas de cada ministério com a sociedade civil, fortalecer e coordenar os mecanismos e as instâncias de participação social, bem como definir diretrizes e orientações para as parcerias e relações com organizações da sociedade civil. Competirá a estes, ainda, assessorar direta e imediatamente as ministras e ministros de Estado na formulação de políticas e diretrizes para a promoção da participação social, da igualdade de gênero, étnica e racial, e para a proteção dos direitos humanos e o enfrentamento das desigualdades sociais e regionais.

O projeto busca estar à altura dos desafios postos. As estruturas, tanto do Conselho quanto do Sistema, visam a fazer da participação social parte do dia a dia da máquina pública, para além do discurso ou das boas intenções. Visam, em uma palavra, fazer o povo presente, seja no conteúdo como na forma de promover as políticas públicas.

No entanto, entre a existência de uma estrutura com competências bem definidas e o avanço efetivo da democracia direta e do controle social há uma distância importante, e isso torna o desafio ainda maior. É preciso, para além de fomentar, coordenar e articular, também medir.

São fundamentais, portanto, o monitoramento e a avaliação contínua das políticas de participação social para que os insumos gerados nos processos participativos sejam de fato considerados pelos gestores na formulação e execução das políticas públicas. Do contrário, mecanismos que possuiriam um caráter pedagógico, do ponto de vista democrático, poderão ter um efeito contrário, gerando frustração, deslegitimação e abandono. É necessário produzir um sistema de indicadores que permita avaliar, principalmente, a eficácia e a efetividade da participação social, de modo que o valor democrático intrínseco das instâncias e mecanismos participativos seja potencializado.

Importa, também, que as políticas de participação e de transparência caminhem lado a lado. A participação da população só é efetiva quando é bem informada. No entanto, não basta que os dados necessários aos processos participativos estejam em linguagem e formato acessíveis aos diferentes segmentos da sociedade. O próprio modo de funcionamento dos mecanismos e instâncias de participação também precisa ser “transparente” – ser compreensível a seus interlocutores, dialogar com os modos de vida das populações que se visa a politicamente incluir no território.

Aqui, deve-se atentar, em especial, à importância de se levar em consideração as singularidades das populações tradicionais, que, para além do aspecto linguístico, se diferenciam também na sua forma subjetiva de perceber e estar no mundo. A criação do Ministério dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial terá um papel relevante para ampliar as possibilidades de os povos indígenas e comunidades quilombolas terem voz sobre as políticas e serviços públicos que afetam diretamente as suas vidas. Mais ainda, para potencializar a expressão de sua cosmovisão na disputa com o modo de vida profundamente destrutivo para o planeta que o sistema econômico que tem no lucro e na acumulação seu valor maior representa.

Por fim, tanto para medir quanto para traduzir é necessário entender. Fazer o povo presente passará por recompor o tecido social rompido, e, para isso, será necessário superar as condições que levaram ao crescimento do fascismo no Brasil, sem perder de vista de que o fenômeno que temos diante de nós ultrapassa fronteiras. Estamos prontos para dialogar com os que querem nos destruir? A retomada da trajetória democrática tem desafios enormes, que superam as perdas patrimoniais expressas nas janelas e obras de valor histórico e cultural vandalizados. Investir em diagnósticos envolvendo pesquisas sociais, etnologias, grupos focais será fundamental para nos ajudar a reencontrar o caminho.

* Anjuli Tostes é Advogada Popular, Auditora da Controladoria-Geral da União, Doutoranda em Direito e Economia na Universidade de Lisboa e integrante da Secretaria de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo