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E se pudéssemos eleger, em vez de um, vários presidentes?

 Por Isabella Cristina Lunelli*

¿Esperan que en sus miserables mundos, aparecerá, de pronto, la señalización que indique: “punto de reunión en caso de apocalipsis”? (SupGaleano, liderança do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN)

Há muitas formas de olhar e pensar a realidade. Há quem olhe para a Amazônia pensando-a como um campo vazio à espera de hidrelétricas, rodovias e ferrovias transnacionais, ou mesmo nas cifras de ouro, diamante e nióbio prontas para serem desenterradas. Há quem olhe a mais recente tragédia da natureza brasileira, em que a oleosa ineficiência da gestão pública intensifica o dano à vida marinha e à saúde de milhões de pessoas, e pense em dissimular sua (ir)responsabilidade com embargos econômicos dos Estados Unidos à Venezuela, ou com rotas de navios de ONGs.

E se, entre as fendas e rachaduras do sistema, olhássemos para nossa forma de governo e pensássemos num presidencialismo colegiado? Em que, em vez de um, um grupo de presidentes tivessem a competência de governar?

A proposta pode ter muitas justificativas. Conforme nos ensinam as teorias sobre o Estado, o poder estatal é uno e indivisível, mas exercido igualmente entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ao considerarmos que esses dois últimos, na tradição histórica constitucional, possuem uma formação colegiada, por que não pensar no poder Executivo nesses moldes também?

Sob a lógica das democracias plurais e da representatividade, não seria mais justo um modelo em que representações diversas governam juntos (especialmente se tomarmos em conta que o atual presidente brasileiro foi eleito com menos de 40% dos votos totais)? E os outros 60%, não teriam o direito de eleger seus representantes também?

A proposta não é nova nem única. Em 1992, quando nos preparávamos para o plebiscito que escolheria o presidencialismo como sistema de governo, em vez do parlamentarismo, o tema já entraria em pauta como uma das “novas possibilidades que se abrem para a reforma do nosso presidencialismo” (1) – como a apresentaria o Deputado Vladimir Palmeira (PT-RJ).

Possibilidades, existem muitas. A que trago ao debate é recente e parte de movimentos indígenas no México. Quando, ainda em 2016, povos indígenas passaram a se reunir em torno de um novo projeto: transformar o Estado reconfigurando o Poder Executivo estatal.

Para além de toda a complexidade teórica, a proposta foi simples. Há algumas décadas, acompanhamos as crises de governabilidade que perpassam a realidade de vários países da América Latina. O “hiperpresidencialismo”, ou seja, a concentração (e o excesso) de poder em uma única pessoa não estaria mais dando conta de trazer representatividade aos cidadãos de países marcados por uma profunda diversidade cultural.

Assim, em vez de lutar contra, como poderia transparecer uma interpretação equivocada, movimentos indígenas mexicanos passaram a lutar com a cultura estatal, transformando-a desde dentro. A alternativa trazida foi concorrer às eleições presidenciais de 2018, substituindo a gestão unitária por uma gestão colegiada do governo federal. Não somente um Estado pluricultural, mas, sim, um governo plural.

Sob o nome de Consejo Indígena de Gobierno (CIG), esse colegiado foi instituído em assembleia geral por milhares de pessoas que representavam vários outros grupos raciais e étnicos. Em comum, tinham a vontade (e a iniciativa) de colocar um fim a governos que favorecem a narcopolítica e elites oligárquicas, aprofundando desigualdades e reforçando a discriminação e a pobreza.

Ciente de que não detinham força política prévia para mudar a Constituição, para contornar os empecilhos burocráticos do registro da candidatura colegiada, escolheram uma “porta-voz” para configurar o nome nas urnas. Assim, María de Jesús Patricio Martínez, mulher do povo indígena Nahua, curandeira tradicional e ativista de direitos humanos, foi nomeada porta-voz do CIG.

Em que pese o CIG não ter (ainda) alcançado os fins que se propôs — vencer as eleições presidenciais e mudar o sistema de governo –, não restam dúvidas de que essa proposta, gestada desde as culturas indígenas, semeia reflexões sobre como concebemos as tradições da cultura do Estado de Direito.

A reconfiguração dos mandatos e o exercício dos poderes estatais, reinventando tradições que nos foram impostas, já não é novidade e pode ser observada com as candidaturas coletivas nas últimas eleições. No Brasil, em 2018, pudemos acompanhar a proliferação e a naturalização de candidatura de grupos, especialmente de minorias e movimentos populares para o exercício de cargos no Poder Legislativo federal e estadual.

Os “mandatos coletivos” são uma realidade hoje, embora essa subversão ainda seja pouco discutida em toda a sua dimensão. Por que não levar essas propostas ao Poder Executivo também?

Nunca é demais repetir que o Estado brasileiro se reconhece pluricultural. Vivemos em um território marcado por intensa diversidade de culturas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, faxinalense, pescadores artesanais, ciganos, entre outros povos e comunidades tradicionais. Muito mais do que línguas, pinturas e cantos, a cultura é formada por elementos que se expressam nas criativas formas de organização social, na pluralidade de sistemas jurídicos, além de seus ritos, mitos e crenças próprias.

A cultura também é dinâmica. Por isso mesmo, as tradições podem e são constantemente inventadas e reinventadas. Reinventar nossas próprias formas e sistemas de governo é um processo social, relacional e intercultural. Também é, atualmente, um dos grandes desafios às democracias plurais em países marcados pela diversidade o diálogo com outras culturas.

Ao operacionalizar essa abertura a outras formas de pensar, de ideias, diante dos limites que nos subordinamos, construiremos novas soluções para velhos problemas do Estado de Direito.

Em tempos de alternâncias de poder, acompanhamos atentos e aturdidos opções que propõem a exclusão de demandas políticas. Estratégias para ocupar prefeituras e câmaras de vereadores estão sendo debatidas. Protagonismos estão sendo tecidos. Nesse sentido, propostas como a do movimento indígena mexicano são capazes de trazer elementos que contribuem para a organização das próximas eleições e para novos tempos. Parafraseando o sociólogo peruano Aníbal Quijano: é tempo, enfim, de reinventar as tradições culturais e fazer com que deixemos de ser o que não somos (2).

(1) O plebiscito que determinou a atual forma e sistema de governo brasileiro após a redemocratização de 1988 (o regime republicano e o presidencialismo) ocorreu em 21 de abril 1993. O tema do presidencialismo colegiado aparece no Diário do Congresso Nacional, ano XLVII, n.55, de 28 de abril de 1992, p.7467.

(2) QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2000.

 

Isabella Cristina Lunelli, doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC) e pesquisadora associada do IPDMS. Integrante do GT “Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais”.

Edição: Daniel Giovanaz