* Por Gerusa Bittencourt

Entrega de faixa presidencial por uma mulher negra demarcou para o Brasil um novo momento

capitalismo, o patriarcado e o racismo são parte de um único sistema de dominação e exploração. Por isso é necessária a construção de uma sociedade cujo projeto atue sobre essas distintas dimensões de desigualdades e iniquidades. É necessário reconhecer a inexistência de hierarquias entre essas lutas, pois elas concomitantemente estão postas para nós mulheres negras. A luta é contra este sistema multi opressor.

Apesar do avanço das forças neoliberais no mundo e os consequentes processos de desintegração social, com o recrudescimento da violência e das formas de dominação e exploração sobre a classe trabalhadora, das mulheres e da população negra, tivemos vitória importante no último semestre aqui no Brasil, derrotando o fascismo e o golpismo através de eleições democráticas e legítimas nas urnas.

O processo lindo de posse do presidente Lula, onde foi histórica a entrega de sua faixa presidencial por uma mulher negra, demarcou para o Brasil um novo momento na contramão do que vinha ocorrendo, distintas expressões perdem força a partir disto. Além do simbolismo da presença das pessoas que subiram a rampa ao seu lado até o Palácio do Planalto, que também marcará o processo histórico.

Foi um ato simbólico para barrar o ataque aos direitos à terra e aos territórios com o maior cerceamento praticado pelo agronegócio, o controle sobre a vida e corpo das mulheres, o racismo e xenofobia, bem como a homofobia, como visto no caso das expressões artísticas. Além da inclusão das pessoas com deficiência.

A incidência do neoliberalismo sobre a vida das mulheres negras que às condiciona à pobreza extrema, ao aumento da violência doméstica, ao luto pela morte dos seus filhos em razão do genocídio e extermínio da Juventude negra pelo necropoder; a violência patriarcal que é estruturante do modelo de sociedade que se entrelaça com o racismo; o encarceramento da população periférica, pobre e preta e das mulheres que em sua maioria são negras; a negação da ciência e a verdade baseada em evidências; o luto da pandemia de dovid-19: tudo isso são consequências do sistema baseado no gênero, raça e capital (lucros em detrimento à vida).

Por isso, precisamos estar atentas às atualizações necessárias à esquerda no sentido de acolher essas demandas e impactar a vida cotidiana das mulheres.

Agora, é com a possibilidade de impactar nas políticas públicas, nas diferentes áreas e ministérios, que poderemos dialogar com a atual gestão federal e mandatas de mulheres negras.

Nunca antes na História deste país se teve tantas mulheres ministras, deputadas e senadoras.

Todavia, não basta ser mulher, não basta ser negra e não basta ter mandatas. O que nos cabe, enquanto militantes e movimentos sociais, é não esquecer nosso papel e seguir na luta e no controle social especialmente nos conselhos, mas também na rua e nas mobilizações, pois a direita não dorme e o patriarcado segue tentando nos matar, todos os dias. O racismo nos odeia cada vez mais. O capitalismo quer nos escravizar. Não podemos deixar que isso aconteça. Precisamos mudar o mundo para mudar a vida das mulheres. Ganhar uma eleição foi um passo nesse novo esperançar. Esperançar é verbo de movimento e não de espera. Esperançar é verbo de luta e não de procrastinação.

Estar em movimento faz sentir as correntes, mas também faz arrebentá-las. Podemos citar aqui algumas tarefas que teremos em curto, médio e longo prazo.

O piso nacional da Enfermagem é uma tarefa que a curto prazo, porque afeta milhares de brasileiras. A enfermagem é uma profissão massivamente feminina. Além do reconhecimento pelo trabalho que sofre a misoginia histórica, temos o fator pandemia onde centenas de mulheres perderam a vida na linha de frente pelo coronavírus e deixaram centenas de órfãos. Sabemos que não é à toa que se tem este descaso e este desdém com esta categoria subvalorizada no país, mas que sim, tem relação de gênero, assim como se teve com a profissão de professora, bem como das empregadas domésticas, cuja a necessidade de uma legislação específica escancarou a perversidade do espírito escravagista que imperava e ainda impera nas relações de trabalho das empregadas domésticas e patroas/patrões.

Outra discussão a longo prazo e que é de saúde pública é o aborto. O Brasil nega a existência das mortes e usa a religião como cortina de fumaça para não discutir esse assunto. Mas as mulheres morrem todo dia por não termos a responsabilidade política de discutir e resolver este assunto que é tão urgente. Morrem pelas péssimas condições a que são expostas e pela negligência do Estado que nega a elas seu direito de decidir sobre a própria vida e que as impõe a sua política ou a necropolítica como forma de resolver o assunto. Isso se caracteriza ou poderíamos chamar de opressão estrutural.

Outro assunto é a previdência e as aposentadorias. Tivemos recentemente a reforma trabalhista e a reforma da previdência que precarizou a vida, a saúde e a aposentadoria das mulheres, as deixando desprovidas de seguridade social. Este “novo” governo precisa lidar com isso.

O SUS e a atenção básica foram destruídos. A política nacional de atenção básica foi modificada em 2017 e os agentes de saúde não estão mais na proporção que existiam entre 1990 (início do programa) e 2010 (já como estratégia), deixando gestantes e bebês descobertos de atendimento. A mudança drástica na política federal de saúde da mulher na última gestão governamental trouxe retrocesso em temas como parto, planejamento familiar, métodos contraceptivos e outras discussões que nos pareciam vencidas, quando lançaram a caderneta da gestante. Causando alvoroço e ampla discussão na comunidade acadêmica da obstetrícia e ginecologia. Além do movimento social feminista. Ou seja, precisamos retomar o SUS e devolver aos brasileiros e principalmente às brasileiras.

São necessárias mudanças e diálogos. São só 4 anos para fazer tudo isso e mais um pouco, não temos tempo a perder. Tem trabalho a fazer, e muito. Repito, esperançar é verbo de ação e não de espera.

Há que se lembrar que as pessoas precisam ter dignidade pra viver, comida na mesa, cuja mesa só haverá se houver uma casa para morar. Cuja casa só haverá se houver um emprego. Cujo emprego só haverá se houver renda e geração de emprego e renda. E saúde e educação e mobilidade urbana e ônibus e transporte público decente e cidade pras pessoas circularem e horta e roça e água potável e a lista é infinita.

A vida boa é simples. O capitalismo nos engana todo dia dizendo que precisamos de milhões de coisas para sermos felizes ou que precisamos ter mais do que os outros e outras para nos sentirmos satisfeitos. Roupas caras, melhores marcas. Na verdade, todas e todos precisam ter. Ubuntu.

Há lições nesta vida que não se aprendem na escola formal. É a escola da solidariedade e da troca, da pandemia de covid e das cozinhas solidárias, da chuva e da necessidade de doações de roupas, da calamidade pública e da dignidade da pessoa humana, do povo Yanomami e sua proteção como prioridade da pátria. Tem valores incalculáveis em coisas sem preço. Há que se lembrar que a liberdade, o amor e a paz são direitos humanos. E o novo Brasil necessita de uma refundação para todos e todas, brasileiros e especialmente brasileiras. Não esqueçamos de ninguém pra trás. Ninguém solta a mão de ninguém!

Há vida. A vida ainda há.

* Gerusa Bittencourt é militante da Marcha Mundial das Mulheres, membra do Movimento Negro Unifico (MNU-RS) e enfermeira-mestre em saúde coletiva.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo

https://www.brasildefato.com.br/2023/03/01/o-esperancar-de-um-novo-brasil-e-a-vida-das-mulheres